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Revolução de Avis

Última atualização em Junho 12, 2022

Um escudeiro chamado Vasco Rodrigues Leitão, que estava então como alcaide de Santarém, mandou um dia pela manhã dizer aos mais importantes do lugar que depois de comer cavalgassem todos e se juntassem no adro da igreja chamada Santa Maria de Marvila.

Da mesma forma que se alvoroçaram as gentes de Lisboa quando levantaram o pendão na cidade pela rainha de Castela, se levantou outra união em Santarém. E foi desta maneira;

Um escudeiro chamado Vasco Rodrigues Leitão, que estava então como alcaide de Santarém, mandou um dia pela manhã dizer aos mais importantes do lugar que depois de comer cavalgassem todos e se juntassem no adro da igreja chamada Santa Maria de Marvila, para trazerem pendão pela vila e aclamarem arraial pela rainha D. Beatriz, herdeira do Reino pela morte do seu pai (o rei D. Fernando).

Logo que ele mandou dizer isto, foi sabido pela vila, todos se alvoroçaram, dizendo que a vila se queria levantar por EI-rei de Castela (com quem D. Beatriz era casada). E que em má hora fosse tal cousa feita, porque eles nunca isto consentiriam. E juntaram-se em assoada uns com os outros, falando sobre isto e esperando que viesse o pendão.

Chegou a hora de véspera e juntaram-se no adro daquela igreja até setenta de cavalo, mas nenhum de pé, a não ser para olhar. Vasco Rodrigues estava num grande e formoso cavalo; e quando viu que já ali havia bastante gente para ir bem acompanhado, meteram-lhe a bandeira na mão à porta da igreja. Ele, logo que a teve, deu um brado dizendo: – Arraial, arraial, pela rainha D. Beatriz, rainha de Portugal, nossa Senhora!

Os outros, que deviam responder todos em altas vozes, repetindo as mesmas palavras, como é costume, calaram-se todos. Começou Vasco Rodrigues a andar vagarosamente, com todos atrás dele, e, depois de avançar uma distância de cerca de uma lanço de pedra, disse para os que o acompanhavam:

– E vós outros não dizeis nada? Dizei, dizei: arraial pela rainha D. Beatriz!

E voltou a gritar: – Arraial! Arraial! – como antes dissera.

Eles, porém, a quem pouco agradava tal apregoar, não responderam mais do que à primeira vez. Mas falou uma velha em alta voz, e disse: – Em má hora seria essa! Mas arraial pelo infante D. João, que é legítimo herdeiro deste reino, e não pela rainha de Castela! Como? Em má hora havemos de ficar sujeitos a Castelhanos? Nunca Deus queira!

E dizendo ela isto, começaram-no a repetir quantos homens e mulheres havia pela rua, e iam atrás de Vasco Rodrigues dizendo isto e outras más palavras.

Quando chegaram à Rua dos Mercadores, que é logo ali perto onde se faz uma pequena praça, disse ele outra vez- Arraial! Arraial! -, o que mais fez alvoroçar as gentes. E quando, depois de passar a Rua dos Mercadores, chegou à praça da vila, onde já muitos o estavam aguardando, e levantou voz outra vez gritando – Arraial! Arraial! – foi grande o alvoroço, dizendo todos que má hora fosse tal pregão lançado, que nunca Deus quisesse que outrem reinasse em Portugal senão o infante D. João, e não já a rainha de Castela. E eram os brados tantos e o tumulto tão grande – tanto de homens como mulheres – que se não ouviam uns com os outros.

Muitas das gentes da vila, que estavam em magotes, começaram a chegar-se a Vasco Rodrigues repetindo em muito má hora fosse tal pregão lançado, porque haviam agora de ser sujeitos a Castelhanos, e como se atrevia ele a dizê-lo ou quem o mandava fazer tal cousa?

Então um paliteiro, chamado Domingo Eanes, homem refere e de pouca conta, disse para os outros:
– Que estamos fazendo? Ou que pregão é este?

E dizendo isto, tirou da espada fora. Com ele, fizeram os outros todos, dizendo que se matasse o alcaide.

Os que vinham com este não lhes pesou isto nada, e começaram a deixá-lo, indo cada qual para onde melhor podia. Vasco Rodrigues, atemorizado, deu de esporas ao cavalo e escapou-se fugindo. Levava o pendão alto, mas à entrada da rua topou num sobrado que lho fez tombar; e, não podendo mais levantá-lo, levou-o de rastro até ao castelo, entrando com ele pela porta da traição, que é a um grande espaço dali. Atrás dele ia todo aquele povo, com as espadas fora, bradando que o matassem. Os que estavam nas casas saíam a ver o tumulto, e juntavam-se aos outros.

Assim chegaram até às portas do castelo, que foram logo fechadas à pressa. E voltando para trás, vinham todos dizendo:

– Viva o infante D. João! Viva! Ó, quem no-lo agora aqui desse, e veríamos se alguém se atreveria a apregoar arraial pela rainha de Castela, para nos tornarmos agora castelhanos!

E o grande alvoroço que naquele dia houve na vila só serenou durante a noite, não falando todos noutra cousa.


Fernão Lopes . “Crónica de el-rei D. João”